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O ensino parece a seleção

Já não há paciência para “notícias” sobre a seleção nacional de futebol na televisão. Notícias entre aspas porque elas não são notícias: a seleção está quase a partir para a Rússia, a seleção está quase a chegar à Rússia, a seleção está quase…
Depois surgem os tradicionais “especialistas”. Comentam as “notícias” e, fatalmente, dão as suas opiniões. Sobre a seleção. As escolhas do selecionador. As habilidades dos jogadores. Etc, etc, etc.
O que me transporta, por vezes, para o ensino(*). Parece a seleção. Toda a gente, ou quase, tem uma opinião formada sobre o assunto. E, pior, ninguém se inibe de a exprimir. A escola e os professores são obviamente os mais visados.
A escola tem de mudar. Tem de se adaptar ao século XXI. Não pode continuar (n)a mesma. Parece que parou no tempo. É demasiado transmissiva. Autoritária. Burocrática. Não valoriza os alunos. Reprime a criatividade. É só matemática, matemática, matemática. E as artes? As artes também são importantes. A escola pública não presta. E os colégios privados? Ah, nos colégios privados é que é. Etc, etc, etc.
E quanto aos professores? Têm férias a mais. Não querem trabalhar. Não fazem nada. São uns preguiçosos. Mandam demasiados trabalhos para casa (TPC). Não sabem ensinar. Não querem ser avaliados. Têm privilégios a mais. Têm sindicatos a mais. Só sabem fazer greves. Ganham muito. Ganham demais. Não há dinheiro para lhes pagar. Os maus ganham tanto como os bons. Etc, etc, etc.
Mas a coisa não se fica apenas pelo comentário popular, também temos a opinião científica.
A escola é uma organização que se pode analisar a partir de muitas perspetivas. Pode ser estudada a partir de modelos de análise tais como: a anarquia organizada, o caixote do lixo, a arena política. Não sendo os únicos modelos de análise, de facto há mais, mas estes têm nomes bastante curiosos.
Quanto aos professores, o que dizem os nossos académicos. Bem, esta é uma semiprofissão. Ou, não é uma profissão de todo. Depende dos “investigadores”, sociólogos das profissões, da educação e afins. Mesmo que alguns destes estudiosos também sejam professores. Professores universitários claro. Não haja confusões. E porquê? Porque os professores não têm autonomia profissional. Não controlam a admissão de novos membros. O Estado controla-os, proletariza-os, desqualifica-os, desqualifica o trabalho deles. Etc, etc, etc.
E, claro está, falta a visão que os próprios tem sobre si mesmos.
O trabalho de professor é instável. Precário. Mal pago. Pior, só o do selecionador nacional (de futebol) quando perde. Vive angustiado. Longe de casa. Longe da família. Não sabe se vai ter escola no ano letivo seguinte. Vive em conflito, quase permanente, com o Ministério da Educação (devia ser do ensino!). Não se identifica profissionalmente com os colegas. Acha que ensinar não é o mais importante. Sente que a sociedade não o respeita. Não o valoriza. Não tem autoridade. Seja dentro, seja fora da sala de aula. Além disso, não se considera um trabalhador comum. Considera-se uma espécie de sacerdote a quem foi confiada uma missão essencial. E por isso não faz, nem pode fazer, greves às aulas ou às avaliações. Prejudicar os alunos? Nunca, jamais em tempo algum. Etc, etc, etc.
Curioso é que estes “estados de alma” encontram-se documentados em várias investigações científicas, não só nossa orgulhosa nação, valente e imortal, mas em variadíssimos países. No Brasil, por exemplo, Anna Raquel Machado afirma que

A massificação do ensino, o desenvolvimento científico acelerado, que o professor não tem condições de seguir, demandas sociais que se transformam aceleradamente e que exigem uma “qualidade de ensino”, da qual não se explicita nem o significado, nem o objetivo; todo esse conjunto de fatores tem levado o ensino a uma crítica social contínua e, consequentemente, à desvalorização do papel social do professor e a um sentimento de baixa autoestima. Os múltiplos papéis que os professores desempenham, o excesso de alunos nas classes, a pouca motivação dos alunos para o ensino escolar, os baixos salários, a multiplicação das horas de trabalho e até mesmo a violência física a que estão expostos os professores criam uma situação de trabalho extremamente difícil.

Assim, assistimos a uma espécie de reconfiguração da profissão docente, o professor é subordinado ao aluno e à família, os alunos e os pais são aliados, interioriza-se uma ideia de mercado, cada vez menos verdadeira, de que o cliente tem sempre razão.
Daniella Barbosa Buttler, autora do livro Professor – Uma Imagem Esfacelada?, de onde retirei a citação anterior, diz-nos que

Circula no ideário social uma imagem de que o ensino não é trabalho, mas um sacerdócio. Como se os professores tivessem um dom, fossem profetas e não trabalhadores. É urgente, hoje, valorizar a profissão do professor e essa valorização requer que a significação, as condições e as questões desse exercício sejam conhecidas, compreendidas, clarificadas, questionadas, renegociadas e reconstruídas. (…) É preciso que o leitor, ao entrar em contato com textos de revistas, esteja atento para perceber as imagens construídas por elas, que seja capaz de criar também outras imagens possíveis do docente. Cabe a nós, professores e pesquisadores contribuirmos para alterar o quadro com novos modelos de professores e resgatar o valor social desse trabalhador e desse métier particular que é o ensino.

Neste sentido, apesar deste texto se ter estendido para lá do razoável, termino com uma recomendação: a conferência TED de Ken Robinson Do schools kill creativity? Tem mais de 50 milhões de visualizações…
Nesta conferência Ken Robinson questiona o funcionamento da escola nos dias de hoje. Mas o que apreciei particularmente foi a história que ele contou de Gillian Lynne, uma bailarina de sucesso que tinha problemas de aprendizagem na escola. Onde é que Gillian ultrapassou estes problemas? Numa escola de dança. Perceberam? Numa escola de dança. 🙂
(*) Deveríamos ter um ministério do “ensino” em vez da “educação”. Enquanto o primeiro termo resume aquela que é a principal função dos professores, o segundo termo corresponde à responsabilidade que muitos pais e encarregados de educação têm dificuldade em assumir.